quinta-feira, 6 de março de 2014

A Globalização Cultural e seu pesado ônus

Olá.

É inegável - e chega a ser quase impossível de se argumentar contra - que estamos vivendo na época do multiculturalismo, da dissolução dos conceitos outrora estáveis de "alta cultura" e da massificação da "elite cultural". Com efeito, podemos observar claramente um fenômeno de expansão entre o vácuo das elites culturais, intelectuais e econômicas; esses conceitos tendem a diluir junto com a globalização e o modus operandi vigente na pós-modernidade. Embora de bela aparência para um espectador mais simples, isso pode afetar negativamente a nossa vida e a nossa sociedade, senão vejamos:

1. Um rápido tour pela história da cultura:
A cultura, na sua fundação - há cerca de dois séculos, nominalmente falando -, poderia ser analisada como a força-motriz de progresso de uma sociedade. Para tanto, porém, era sólida e classista; representava o egoísmo no motor eterno não-entrópico da sociedade. Quando o desdém por coisas "mundanas" era tido como "alta cultura", reparávamos também na ajuda, de modo geral, cultural, que a ideia de Estado-Nação recebia .Marcada em grande parte pelo iluminismo, a cultura classista ajudava o Estado a funcionar como um órgão único, dependente da sua sociedade. Gradativamente, graças às facilidades de acesso ao conhecimento, as pessoas pertencentes à ex-elite cultural ampliaram suas mentes e horizontes; agora, pode conviver o som do subúrbio com a fina ópera, e a pessoa que apreciar os dois de maneira igualitária é tida como a mais culta. Isso é ótimo, naturalmente. Dissolve completamente o padrão normativo de que "pessoas cultas são as ricas", "pessoas cultas são as intelectuais", e abre as portas da inclusão para quem nunca pôde figurar dentro dessas categorias (ou ex-categorias). Ao menos é como parece. Mas também recorre em problemas.

2. A "indiferença ao diferente"; como a massificação de conceitos culturais gera anomia social:
No livro "A Cultura no Mundo Líquido Moderno", o genial sociólogo Zygmunt Bauman atenta para um problema muito sério da "liquidez" cultural. Sendo que estão sendo dissociados os grupos e a função cultural está mudada e em processo de extremização, nota-se que o "mais diferente" (dos antigos padrões normativos) é o "mais culto". A grande sacada aqui é que quem não tiver acesso à outros tipos de cultura é excluído, ridicularizado; se alguém que compõe rap desconhece acordes de ópera, a crítica social da música é completamente invalidada aos olhos do padrão social médio. Tudo que não for pertencente a mais de uma "classe cultural" é vista como segregativo, logo, a ser abominado. Quem não tem acesso à cultura de modo geral é AINDA MAIS deixado de lado, mesmo -e agora principalmente - por integrantes do mesmo grupo social. Isso porque massificar não é sinônimo de incluir a todos, e os que estão excluídos não são sequer mais notados, visto que seus "estilos" fazem parte, agora, da antiga "alta cultura"; o ser não mais importa, e sim o que ele veste.

3. O Mercado se apropria de tudo; a dissolução de conceitos culturais impulsiona o consumo desenfreado:
Nada muda mais rápido do que a moda, hoje em dia. Ter coisas do "ontem" é ter algo obsoleto, inútil, gerando bullying nas escolas e nos campos profissionais. Um conceito difundido rapidamente aqui no Brasil, exemplificando, foi a vida saudável; hoje, fumar não é mais elegante, pois contraria o ideal físico vigente. Percebendo isso, o Mercado usa da onda cultural plurificada para impulsionar-se. "Tenha tudo sobre tudo" para ser "mais culto", mais legal, mais socialmente incluído. "Venha fazer parte da Elite", exibem os anúncios, de maneira subliminar. Exatamente como antes, porém agora mais disfarçado, fingindo ser algo realmente muito bom. Isso ocasiona em total anomia dentro dos grupos sociais, que infelizmente não podem ser dissolutos; não tendo mais a cultura em comum, os indivíduos com menor poder de compra para atualizarem-se são deixados para trás.

4. A cultura interfere diretamente nos Direitos Humanos;
Sendo essa multicultura uma causa de anomia, podemos observar que a sociedade pós-moderna tende a ser, no máximo, "simpática" com os seus membros. É quase impossível existir solidariedade. A desestabilização da cultura tem culpa e consequências, também, sobre isso, visto que gera "diásporas" (me apropriando mais uma vez de palavras de Bauman e Simmel), e enfraquece a identidade dos países (entendendo-os como Estado Nação). O Direito, por exemplo, tende a privilegiar os cultos em detrimento dos incultos. Se a cultura é aberta e engloba absolutamente tudo, a ideia de que todos seriam privilegiados é pueril. É muito mais plausível falar em detrimento geral, exceto - novamente - a nova elite cultural.

Sendo assim, podemos observar que o fenômeno de desestabilização cultural é ruim para a sociedade, embora presumivelmente boa para o indivíduo médio. Bauman enfatiza que é preciso tomar cuidado com as ameaças e a perda do Direito à igualdade. Subscrevo-me. Coletivizar absolutamente tudo transforma-nos em fáceis presas, pois tentamos olhar pela nossa ótica já coletivizada e não para a ótica sociológica como um todo. É curioso pensar em como vive o ser humano; a comparação utilizada pelo sociólogo, de um motor com energia infinita, me parece válida. Estamos rumando ao progresso - ininterruptível - porque tentamos estabelecer uma linha entre nosso individualismo e nossa vida em sociedade, ambos obrigatórios. Como conceitos extremos, eles têm facetas opostas e empurram o ser humano para frente, sempre no seu passo de formiga.

Nesse momento, é necessário, para existir solidariedade, olharmos para nós mesmos. Que características fazem-nos únicos perante a esse grande bolo coletivo multicultural? Não há mais - há menos, sendo honesto, e lentamente tende a desaparecer - o diferencial do grupo; o que mais nós temos para, de fato, sermos quem somos, e não mais um ser massificado e engolido pela própria massa?

Disclaimer: Em nenhum momento do texto digo que é errado que a ópera conviva com o funk; a multicultura é, também, algo bom e uma característica do mundo pós-moderno.  A discussão a ser levantada é APENAS no que tange a não perdermos nossa identidade para o dinheiro. 

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